quinta-feira, 27 de março de 2014

A Demora



Sempre fui um tipo calado.
Nunca me deixei falar. 
Que o que é pensado, 
Sai sempre sem pensar. 

Nesta música que abracei, 
Deixei o porquê de criar. 
Levando o resgatar do que crio,
Sem nunca musicar do que rio. 

Conto-me em melancolias. 
Conto-me em euforias. 
É certo que a vida é aguarela, 
Mas a graça que encontro nela, 
Está no negro e na luz: 
Dignos originários dessa paleta que nos seduz. 

E por isso sou um tipo calado, 
Num recado desconfortável, 
De uma incalculável pasmaceira.

Estranho-me em momentos normais.
Quero estar mais perto do brilho, 
Ou ficar pelo trilho do breu. 
Onde dos demais sou mais eu. 

Só recuso a passividade de uma certa incapacidade, 
De mudar o sítio em que estamos. 
Na urgência de passar esta inutilidade, 
Que é não chegar ao lugar para onde vamos. 

Recuso-me a viver fechado numa linearidade com controlo, 
Com tanto de viciante como de entediante.
Como se a vida fosse revivida no consolo 
De reviver uma recordação inexistente de origem pouco desviante. 

No final, a vida terá sido o rasgo e a espora. 
A recordação de viver sem a Demora. 



sábado, 22 de março de 2014

Ser Eu



Não é nada que não se possa resolver. 
Não me ligues somente, deixa-me estar. 
Deixa-me sobreviver. 

Quem sou eu, para ser o que quero?
Quem sou eu, para ter o que quero?

Sou herói da minha própria consciência, 
Reitor da minha digna irrealidade.
Sou perdedor de uma aparência, 
Movida a sagacidade. 

Fico só aqui neste canto.
Deixa-me só, deixa-me estar. 
Deixo a noite cobrir-me com o seu manto. 
Deixo-me só, deixo-me estar. 

Aquilo que tive é somente pouco. 
Aquilo que preciso parece-me nada. 
Quero aquilo que quero, assim, meio louco. 
Desejo aquilo que desejo, tudo ou nada. 

Quero-te a ti e a mim. 
Desejo-te a ti, sim.
Quero ser o que desejo ser: 
Meu próprio dínamo a mexer. 

Mas por agora deixa-me estar. 
Não me sigas, não me persigas, não assim. 
Sem intrigas, sem brigas, tu em mim. 

Soluço sobre o futuro, 
No medo de daqui, não o ver chegar. 
Peço-lhe que se empoleire no muro, 
E que o olho nos pisque a avisar.

Seremos dele. 
Espero ser EU, 
Entregue a ele.
Indiferente a ser teu. 

quinta-feira, 13 de março de 2014

A Triste História de um Barco Mal Pintado


Henrique estava a aprender a fazer um "quantos-queres" quando a Leonor chegou ao pé dele. Os dois meninos ali estavam, entretidos a fazer dobragens. Leonor parou de pintar o seu barco de papel e ficou a olhar para Henrique.
Ela achava graça à maneira como as suas bochechas faziam covas quando ele fazia força sobre o papel para dobrar.
Naquelas maneiras de crianças desajeitadas, próprias da idade, os dois estavam agora a trabalhar juntos. Leonor sorriu-lhe e pegou numa folha de papel, ajudando-o a fazer o seu primeiro barco.
Dobra daqui, estica dali, dobra do outro lado e feito! O barco do Henrique estava pronto a navegar. Ela queria pintá-lo, o Henrique achava que ficava melhor assim. A branco. E com as sombras do papel dobrado.
Leonor pegou no barco e entregou-o a Henrique. Estava de tal maneira chateada que saiu da mesa em poucos segundos e o Henrique ficou ali. De barco na mão.
O que o Henrique fez nos minutos seguintes? Pintou-me. Não percebeu a saída da Leonor e começou a pintar-me o casco de roxo. Já alguém viu um barco com um casco roxo? Sou eu. E também sou de papel. E pintou-me as velas de verde. O Henrique não tem o mínimo sentido de moda. Lá terminou de me pintar e olhou à volta procurando a Leonor. Tanto desacordo e afinal ele pintou-me como ela queria. Embora eu ache que a Leonor nunca fosse deixar que ele me pintasse com aquelas cores. Mas enfim.
Quando percebeu que ela não estava lá, pegou noutra folha e desenhou um rio muito curto. Na distância de dois afias de margem a margem. Mas em comprimento ocupava a folha toda. Ajoelhado à mesa, como estava há largas horas, pousou a folha no chão e deixou cair uma lágrima fungada.
Deixou-me cair na água do rio, bem perto da lágrima e foi embora.
E aqui fiquei: roxo, verde, ao lado de uma lágrima que não seca. A navegar em águas paradas, amenas sem qualquer movimento, sem qualquer abanão. É melhor habituar-me, pois esta água nunca me afundará.

Onde o Meu Coração é Lento

E se o tempo fosse capaz
De um volte-face instantâneo.
Em que se levasse o que o mar traz, 
Em que se isolasse o momentâneo. 

Sei da tua morte, 
Crescendo no terreno da tua vida. 
Este presente de fino recorte, 
Trazendo aquela recordação suicida. 

Deixei-te lá para trás, 
Mas o tempo não sabe o que faz. 

Só me tolhe, vulgariza, racionaliza. 
No cárcere envidraçado que martiriza. 

Sorrias, passavas, voavas, seguias. 
E só no respirar me prendias. 

Indistinguível do que mereço, 
Não o quero, nem o peço... 
És uma discordância com consenso, 
Um café fraco, intenso. 

No fundo do amanhecer, 
Que te encontre algo novo. 
Faço-o por merecer, 
Mesmo seguido por este corvo. 

Numa estrada de vácuo vazio, 
Levo chapadas de vento, 
De um ardor frio.
Aqui onde me sento, 
Onde já só choro enquanto rio, 
Onde o meu coração é lento
E o olhar joga ao desafio: 
Peso o amor num momento, 
Segue-me o passado por um fio. 

E no nó ficou,
Infinitamente sem fim, 
Um amor que não sepultou 
Nenhuma das vidas em mim.

domingo, 9 de março de 2014

Resiliência


A mente encheu-se de sonhos
E cambaleou pela realidade. 
Desfiando de passados medonhos, 
Desafiando a gravidade. 

E a Vida saltou da pele, 
E a energia encheu-se de vento.
Procurei a resistência como intento, 
Fugindo com resiliência do fel. 

Este mundo não é mais o nosso. 
Este mundo é mais o meu. 
Quero aquilo que não posso. 
Ter o que sou eu. 

Uma réstia de esperança que me cerca o olhar, 
De não me deter no que pretendo alcançar. 

Morro e resisto. 
Depois da queda não desisto. 
Entre a ternura e o engenho, 
Numa vida que reside neste misto: 
Olhar onde me tenho, 
Saber que existo. 
E lutar pelo meu empenho, 
Na armadura de que me revisto. 

É que não tarda é Primavera, 
E a base em que carburo, 
Sei-a agora uma mera
Janela que procuro. 

Longe onde cheguei. 
Perto onde estou.  
Ali dou a curva e saberei
Ser para onde vou.  

sábado, 8 de março de 2014

Sentimento Enciptado

E ali se beijavam.
Carlos e Ana eram ali um só. E quem os visse naquele momento, nunca imaginaria de onde eles vieram.
Carlos partiu para aquele café com aquele gostinho intrínseco de que não seria só café. Já Ana saiu para aquele café com o mesmo gostinho do Carlos, mas dentro de uma caixa. Dentro de outra caixa. Dentro de uma caixa maior. Que ficou dentro de um saco de plástico. Dentro de uma caixa de chumbo. Dentro... Bom, já se percebeu a ideia.
Quando Ana saiu do carro, atrasada como sempre, já Carlos estava do outro lado da rua à porta do café. A olhar para ela e a abanar a cabeça. Porque o Carlos, não sei se sabes, mas sofre um pouco de Asperger. Os médicos dizem que não, mas a atitude dele face às pessoas diz precisamente o contrário. Abanava a cabeça num claro "lá estás tu outra vez a chegar atrasada" e ria-se para ela. Ela meio que levantou as mãos - porque a Ana é como a maioria das raparigas, gosta tanto de chamar a atenção, como o miúdo que sofre de bullying na turma da primária - a tentar pedir desculpa sorrindo.
E Carlos enquanto olhava para ela pensava, o que é que eu vou fazer quando ela aqui chegar? "Vou abraçá-la. Apetece-me tanto... Ela é tão... Eu gosto tanto dela."
A Ana chegou até ao Carlos, cumprimentaram-se com um beijo na cara e entraram.
A conversa deslizou pelos sítios do costume. Com o Carlos a tentar não dizer nada para além do que é visível e a Ana a tentar mostrar que ele é sempre assim.
Já se conhecem há tempo de mais. Mas na verdade não se conhecem tão bem. Mesmo desde os 5 anos de idade.
Nada de novo, afinal o café foi só o café.
E saíram. E
resolveram dar uma volta. Então o Carlos, lá no meio do largo deserto, onde só se ouviam as folhas a mexerem com a brisa, decide falar. E a explicar o quanto há por debaixo da sua pele, abraça Ana.
Ana nem foge. E abraça-o também.
Ele descansa-a dizendo que gosta muito dela como amiga, mas que tem um carinho muito especial por ela.
A Ana sempre soube, mas finalmente, para ela, o Carlos acaba por dizer alguma coisa para além das meias-palavras com que se esconde.
E naquele abraço, os dois afastam-se um pouco, olhando-se nos olhos, pestanejam à velocidade terna de um sentimento encriptado. Ela acena tão subtilmente que só quem estivesse dentro daquela constelação se aperceberia. E esboçam um sorriso. São amigos. E os olhos entornam-se nos lábios. Ele nos dela. Ela nos dele. E beijam-se. Não sabem o que foram, sabendo o que agora são.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Indomáveis até ao Anoitecer - Um pouco de Ópio



Ontem de noite pensei em ti. 
De forma anormal para os tempos que correm. 
Não aconteceu nada, nem te vi... 
Somos vidas que não morrem. 

Chorei de forma pouco natural, 
Para quem já não sabe chorar.
O conforto do mal, 
São palavras húmidas a sarar. 

Tenho tanto para dizer, como para chorar. 
Repetir-me-ei a escrever, não saberei explicar.

Acordei de mente nova, 
Já não estavas lá. 
Tinha o Sol como prova, 
Já não te aceito cá. 

Mas a mentira tem perna curta
E em qualquer momento voltarás. 
Em mente que surta, 
Cá dentro não descansarás. 

Foste-te com o vento
E voltarás com ele num momento, 
De me lembrar do que eras, 
Do que poderás ser. 
As raízes meras
De um futuro que pode acontecer.
Ou as diferenças como feras
Indomáveis até ao anoitecer.  

Morrerei com essa incerteza, 
Ou a origem acabará por morrer?
O teu nome rima de certeza, 
Mas num ou noutro momento, lá continuarei a viver.