sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Vamos Beber um Copo

"Homi qui tem amizadí não précisa de copo. Amizadi não é copo, nem marisco. Amizade é amizade. Por isso conta cómigo. Vamos beber um copo."


Ouvi isto há uns dois dias atrás. Passei por dois homens dos seus 60 anos. Com um sotaque especial. Que quis mostrar por escrito, porque mostra o quanto a sabedoria popular tem a oferecer.
No meio de "A amizade não ser copos, nem marisco" e de "A amizade ser amizade" há um "Conta comigo, vamos beber um copo".
Pode parecer risível. Pode parecer quase uma piada de ocasião. Mas não. Asseguro que foi dito com perfeita consciência do que se queria dizer.
E o destino, as coincidências - o que lhe queiram chamar - tem destas coisas. Apanhei esta fala na mesma altura em que me debatia com a questão de não saber reagir fisicamente, pessoalmente ou em viva voz a algo que tem muito disso.
Para muita gente não é coisa de homem. E se olharmos mais atentamente: Não é coisa de "Homem".
Um certo tipo de pessoas é exactamente o contrário disso. Não tem problemas em demonstrar a amizade que tem, quando o amigo precisa.
Não se trata de amar alguém. Trata-se de numa amizade ser-se capaz de mostrar apoio directamente. Sem subterfúgios.
Outras pessoas não. Outras pessoas são óptimas a mostrar o seu apoio, a sua amizade incondicional em momentos difíceis, através de gestos. E quem conhece estas pessoas, quem as vive de perto sabe o quanto um "copo", o "marisco" pode representar. Porque na verdade, o "copo" não é o "copo". É todo um sentimento demonstrado num símbolo. Para quem seja entendedor literário, é o sub-texto.
Esse tipo de pessoas mudará ou não. Assim a vida o permita. O outro tipo de pessoas, percebendo esse gesto, entenderão a impotência sentida pelo autor do gesto. Porque para quem o faz, parece sempre pouco. A não ser que o olhar de quem recebe o copo, mostre que compreendeu o sub-texto.

E estes dois tipos de seres continuarão a viver em conjunto. Tentando que Amizade seja Amizade, mesmo que a mesma não seja um copo, mesmo que a mesma, ainda assim, o seja.  

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Um cacau para a Susana


Susana nunca foi saudosista, mas uma noite sozinha com a lareira a funcionar e a beber um cacau quente deixou-a à mercê da melancolia.
Cada golo daquela caneca deixava-lhe um gosto a passado.
Cada labareda daquela lareira recordava-a daquele momento. 

A escolha de uma vida independente porque se tem de viver tudo de uma vez, trás consigo a noção de uma realidade distorcida: aos olhos do mundo seremos sempre malucos e malucas, vencedores e vencedoras, modernos e modernas, gente que desafia as leis da física e de uma sociedade que ainda teima em funcionar com uniões. 
Susana é uma dessas pessoas. Independente e moderna de dia - Solitária e melancólica durante a sua noite. Susana nunca sentiu a falta de ninguém. Tem a sua casa. Tem a sua vida. Com 33 anos orgulha-se de ter conseguido grande parte das coisas que outros não conseguiram. Venceu à sua custa. Trabalhou para isso. E mais que tudo, não se deixou enredar por ninguém. 

Bem... mais ou menos. É que esta coisa de ser o lobo (a loba) solitária é óptimo para consumo externo, mas imprópria para introspecção. 
O Homem é nascido do seu individualismo clássico e inato até se aperceber que não sobreviveria sem o cordão umbilical. 
Temos pena, caros solitários e solitárias: É mesmo assim. 

E Susana descobriu isso mesmo naquela caneca de cacau quente. Desde a adolescência que se cingiu a viver as coisas até ao fim. Pensava ela que estava certa, até descobrir naquela lareira que o seu "fim" não era o "fim". Passaram vários namorados desde essa altura e sempre se habituou a não ficar agarrada a nenhum. Afinal, não podia deixar-se prender. Tinha o mundo todo para ver e viver. E os sentimentos retardam, constrangem. As emoções vêm e vão. Essas sim! 
Traiu, viajou, cantou, foi Marte e Júpiter, Neptuno e Plutão... Mas nunca viu Saturno. Nunca viu o tempo. 
E naquele gosto de cacau quente que lhe aquece a garganta, relembra no gosto o João. 
Que parva ela fora em fugir do João. Tinha muita coisa para viver. Tinha muita coisa para ser. 
E a lenha ardendo lentamente leva-a até ele. O toque da sua pele e do seu riso. A crítica do seu olhar e o mundo na sua mão. O mundo fora dela e ela nem se deu conta. Tinha muita coisa para viver. Tinha muita coisa para ser. 

Não lhe dá para chorar. Não agora aos 33 anos. Não agora 10 anos depois. Não agora por uma causa perdida. Isto de ser uma solitária para viver tudo o que precisa viver, acabou por fazê-la viver aos olhos do mundo, sem nunca ter vivido ela própria. 

Era o João. Eram eles os dois que ela não viu. Porque não se vive apenas o que se vê. 
Bebe o resto do cacau e a lareira vai morrendo. Pega no telefone e inspira a gravidade de que a vida é tanto mais vivida quanto menos os olhos perseguirem. 
A pesquisa pára no nome "João". A lareira apaga. Será que atende? 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

O Daniel Apanhou uma Merda Inevitável


Existem merdas que se evitam e existem merdas inevitáveis. 
O Daniel lá vai evitando e jura a pés-juntos que a mantém à distância única e exclusivamente por uma manifesta cordialidade: não dela, só dele. Diz que assim, até a nível virtual, se separam as águas já que o ressentimento é mútuo. E ele é o Senador que protege de forma adulta um desaguisado. Coitado. 
Na realidade ela remexe-lhe as entranhas. Calma! Num jeito figurado.
Existem merdas inevitáveis e volta e meia, o Daniel acaba por se ver a braços com uma delas. Volta e meia há um cabrão de um Opel Corsa vermelho que aparece à frente do carro dele. Sempre no mesmo sítio. Sempre o mesmo cabrão. Por mais de uma vez, o Corsa pára na mesma parte da rua e o Daniel começa a sentir uma palpitação estranha ao fundo da nuca. Apanha-lhe a espinha, junta-lhe a garganta e ataca-lhe os nervos. É uma espécie de rebentamento de neurónios que atafulham os sistemas do corpo humano. O rapaz começa com suores frios, agarra bem o volante com vontade de sair e de ficar no carro. De ir embora e de ir bater no vidro do Corsa. 
Ele nunca vira o Corsa vermelho. Somente sete vezes, já bem depois de ela lhe bater com a porta na cara e lhe levar o DVD do Sweeney Todd. Ah e a merda da torradeira. E que bela torradeira. Cabra. Não da torradeira, mas dela. 
E como o Corsa pára sempre naquele mesmo sítio, em todas as sete vezes, o Daniel dá a volta ao quarteirão na ânsia de olhar sem ver nada. Para comprovar que é o mesmo cabrão do Corsa. 
E ele jura, porque jura que é o Corsa em que ela vem. E o outro é dono do Corsa. O Daniel nunca viu nada, nem ninguém. Como se o Corsa fosse conduzido qual "Carro Assassino" sem ninguém ao volante. E diga-se, nunca viu porque faz questão de não ver. Prefere entrar em parafuso, do que soltar três ou quatro - imagina quem vê de fora. 
Eu, que o vejo de fora, digo-lhe para se afastar naquele jeito de Senador de vão de escada. Que protege de forma adulta um desaguisado. 
Ele? Ele fica lixado porque me admite que afinal não é a torradeira que lhe interessa ou o magoa. Nem sequer o DVD. Apenas gostava de ser dono daquele Corsa...   

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Jogo de Vultos


Inúmeros acontecimentos 
Que tendem a acontecer, 
Se esvaem em momentos, 
Num acontecimento que nunca chegou a ser.

Troca de olhares, risos espontâneos. 
O fim dos azares, cantos momentâneos. 
A paixão, o grito, o salto, 
A imensidão, o mito, o Presente lá no alto...

São fagulhas de inebriação, 
São semi-colcheias da Canção. 

Que me fito em cansaço, 
De saber que é tudo tão escasso,
De saber que nada acontecerá, 
Que me fito no que não será. 

Que me quedo em não dar seguimento: 
Chega de esperança real!
A que me puxa ao desejo carnal, 
Ao sentimento, a uma via profissional.

De entre este jogo de vultos 
Onde não jogo mais,  
Recebo felicidade aos tumultos, 
Sem esperar conquistas reais. 

Em algum momento este escrito
Será um mito, 
O horizonte será esperança
De uma vida real, da que não cansa.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

No Meio da Rua

E parou no meio da rua.
Sentou-se na pedra molhada da chuva miudinha. O vento batia-lhe na cara sem o incomodar. A cidade está deserta e a sua pessoa confunde-se com cada objecto presente naquele espaço.

A brisa gelada de inverno esculpe pequenos traços de gelo nas bochechas. Não se vê, mas ele sente.
O tempo parou e cada folha que cai esgota-lhe, a níveis cada vez mais profundos, a permanência numa realidade física.
Não se coíbe de entrar num drama metafísico. Nada lhe importa.
Ali: é ele e o tempo da sua escolha. Pousa uma mão no passado, com um pé dentro dessa felicidade. Pisa com o outro a ansiedade que faz do Homem um ser tão infeliz.
Sobra a mão com que solta no ar um futuro, que segue elevando a cabeça, seguindo com o olhar:
A esperança serena que deve caber a cada comum mortal, que como ele canta que o amanhã será Sol.

Recuando àquela rua, devolve-se ao concreto, sorrindo em tom sarcástico: Que partida o destino lhe pregou, não deixando que nada, nem ninguém o interrompesse.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Ricardo é Parvo


Numa aparente calma, o Ricardo avança na direcção de cada vítima.
Espera ao longe, qual leão esfomeado, preparando o ataque final. Espera por entre o mundo da rua, antes de se atirar à carcaça. Escolhe o alvo. O mais fraco. 
É uma senhora de meia idade que agita o saco da Bershka enquanto avança destemidamente em direcção ao final da Rua Augusta. O olhar dela preso no infinito do relógio lá no alto e o Ricardo interpõe-se:

- Bom dia, pode-me dispensar um minuto do seu tempo?

Nada. Nem uma hesitação no passo. Nem um olhar. Nem um suspiro de consternação. Ao contrário de Ricardo que se vê novamente desprezado. 
Afinal, de que serve ser-se empreendedor por conta de outro, se nem para as solas dos sapatos ele ganha? 
Como se não chegasse esse facto, ainda se torna impossível conviver com tamanha humilhação. A de quem passa, nem o ver. Nem o ouvir. Nem hesitar.
Se bem, que esse facto não tenha de ser realmente mau. Olhando de longe, Ricardo até se sente mais leve. É que as bugigangas que ele vende, têm tanta utilidade como metade do mundo que nos rodeia. "É para ajudar os mais desfavorecidos!" diz um colega. E o Ricardo? O Ricardo pensa: 

- Mas que estou eu aqui a fazer, se eu sou um desfavorecido?

A metáfora real, é então o que o Ricardo leva para casa. Mais um dia de humilhação, mais um dia a chatear o próximo, mais um dia em que ganhou a sua percentagem para comprar meia dúzia de feijões. Isto tudo a tentar ajudar os mais desfavorecidos. Vejam lá o quão irónico pode o mundo ser. 

No dia seguinte, lá estará de novo. Bem como as senhoras de saco da Bershka concentradas no finito da rua. Porque nada funciona tão bem, como manter-mo-nos parvos, sabendo quão parvos somos. 

E Só Haverá Sol

Eram hoje umas poucas horas da tarde quando chegaste. Eu estava como sempre sentado no meu banco. No meu canto. Como sempre, sentaste-te a uns poucos centímetros de mim. Como se nada fosse.
Olhei-te, como sempre, novamente, cabisbaixo. A minha condição não me dá para mais.

Hoje a tua beleza está mais leve e bela que nos outros dias. Talvez porque tenha parado de chover e hoje seja mais dia que outro dia qualquer. É que a chuva é boa de quando em vez. Mas é uma lástima para quem como eu passa os dias na rua. As tardes neste canto do banco, e as noites nele inteiro.

Queria-te dizer que anseio a tua dose de energia. Na forma como me ofereces essa parte da tua sandes. Queria explicar-te que te invejo a jovialidade, que na idade que envergo já se me não serve.
Digo-te que estas rugas são um fardo. Maior do que a sujidade e as pulgas que trago. Até porque, como te digo, tem chovido.
Queria explicar-te que me encontro comigo mesmo em cada noite e que me sinto na consciência de estar num estado sem alteração de estado possível.
Queria explicar-te que já tive as minhas loucuras, as minhas alegrias, quase fui pai, quase estive casado, que vi morrer a minha companheira, que me vi sozinho e despejado numa rua que nunca tinha visto como mais que um pedaço de chão por onde tinha de passar diariamente.
Queria-te dizer que me encontrei sozinho neste pedaço de vida que me encaminha para um fim silencioso. Distante de uma realidade que não sabe de mim, embora tropece na minha existência em cada manhã neste banco.
E enquanto mastigo e tu mastigas... esboço a minha lembrança de sorriso na troca com o teu, assumindo a posição de estadista do meu destino. Ah, como se tivesse escolha... Devo-te este acordar de vida, numa
encruzilhada de um único rumo. Devo-te este Domingo de sol, numa invernosa tarde de chuva.
És bela. És jovem. És cuidadosa e cândida. És tudo o que nunca fui. Poder-te-ia explicar tudo isto numa nossa conversa, só que tu já sabes.

A cada dia que te sentas nesta minha casa, neste meu banco, deste jardim, encontras-me aqui com este cansado semblante. Conversámos tanto sem trocar uma palavra, que te devo uma jura de silêncio num resquício de agradecimento.

E como sempre acabas primeiro que eu e segues teu caminho e eu não sei para onde vais. Não sei nada sobre ti, mas conheço-te tão bem.
Foste e começou a chover. Mas tu sabes que uma tarde voltarás e não me verás mais... E só haverá sol.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Tempo

















Tempo que nos separa da realidade.
Quem nos faz sentir o que vemos.
Quem nos cria superfícies de verdade.
De fundo em mentiras que cremos.

E nos triste sabor da melancolia,
Habito, livre, sabendo para onde iria,
Se o seu arrasto não se tornasse infinito.
Se o seu lastro não fosse um futuro que hesito
Acreditar, por ser tão longe.
Sem nitidez.
A errar, por ser tão perto.
Sabendo que fui eu quem o fez.

A luz de Afrodite,
Caiu tão atrás,
Que o coração admite,
Que a inexistência o satisfaz.

Tão passado que deixa de ser perceptível.
Achando-nos figurantes de matéria carnal.
De uma existência risível,
Por já não acreditarmos em tal.

Matéria de amor em que nos tornamos ateístas,
Figuras de passagem de um tempo tão longo,
Que nos deixou sem pistas.

Ele assim é.
Laça-nos lá e retorna-nos não se sabe bem onde.

Ele assim será.
Tentando acreditar que é mais que produto mental.

E nesta estação, espero por um comboio que tarda em chegar.
Olhando uma linha que não se mostra ao olhar.
Espero andando no cais infinito sem emoção.
Agarrado ao banco, agarrado ao coração.

Não sei se tardará.
Não sei sequer se virá.