terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Um cacau para a Susana


Susana nunca foi saudosista, mas uma noite sozinha com a lareira a funcionar e a beber um cacau quente deixou-a à mercê da melancolia.
Cada golo daquela caneca deixava-lhe um gosto a passado.
Cada labareda daquela lareira recordava-a daquele momento. 

A escolha de uma vida independente porque se tem de viver tudo de uma vez, trás consigo a noção de uma realidade distorcida: aos olhos do mundo seremos sempre malucos e malucas, vencedores e vencedoras, modernos e modernas, gente que desafia as leis da física e de uma sociedade que ainda teima em funcionar com uniões. 
Susana é uma dessas pessoas. Independente e moderna de dia - Solitária e melancólica durante a sua noite. Susana nunca sentiu a falta de ninguém. Tem a sua casa. Tem a sua vida. Com 33 anos orgulha-se de ter conseguido grande parte das coisas que outros não conseguiram. Venceu à sua custa. Trabalhou para isso. E mais que tudo, não se deixou enredar por ninguém. 

Bem... mais ou menos. É que esta coisa de ser o lobo (a loba) solitária é óptimo para consumo externo, mas imprópria para introspecção. 
O Homem é nascido do seu individualismo clássico e inato até se aperceber que não sobreviveria sem o cordão umbilical. 
Temos pena, caros solitários e solitárias: É mesmo assim. 

E Susana descobriu isso mesmo naquela caneca de cacau quente. Desde a adolescência que se cingiu a viver as coisas até ao fim. Pensava ela que estava certa, até descobrir naquela lareira que o seu "fim" não era o "fim". Passaram vários namorados desde essa altura e sempre se habituou a não ficar agarrada a nenhum. Afinal, não podia deixar-se prender. Tinha o mundo todo para ver e viver. E os sentimentos retardam, constrangem. As emoções vêm e vão. Essas sim! 
Traiu, viajou, cantou, foi Marte e Júpiter, Neptuno e Plutão... Mas nunca viu Saturno. Nunca viu o tempo. 
E naquele gosto de cacau quente que lhe aquece a garganta, relembra no gosto o João. 
Que parva ela fora em fugir do João. Tinha muita coisa para viver. Tinha muita coisa para ser. 
E a lenha ardendo lentamente leva-a até ele. O toque da sua pele e do seu riso. A crítica do seu olhar e o mundo na sua mão. O mundo fora dela e ela nem se deu conta. Tinha muita coisa para viver. Tinha muita coisa para ser. 

Não lhe dá para chorar. Não agora aos 33 anos. Não agora 10 anos depois. Não agora por uma causa perdida. Isto de ser uma solitária para viver tudo o que precisa viver, acabou por fazê-la viver aos olhos do mundo, sem nunca ter vivido ela própria. 

Era o João. Eram eles os dois que ela não viu. Porque não se vive apenas o que se vê. 
Bebe o resto do cacau e a lareira vai morrendo. Pega no telefone e inspira a gravidade de que a vida é tanto mais vivida quanto menos os olhos perseguirem. 
A pesquisa pára no nome "João". A lareira apaga. Será que atende? 

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